BOLO DE CHOCOLATE …………………………………………………………………………

Carmelita era muito distraída. Semana passada esquecera no fogão aceso uma chaleira com água para o macarrão. A água secou, a chaleira empenou e o cheiro de metal queimado chegou até os vizinhos, que não estranharam. Estavam acostumados.

A patroa, que não a dispensava, dizia:
-A Carmelita é muito distraída, mas ela faz um bolo de chocolate!
Outra vez colocara na despensa quilos de carne fresca que só foi descoberta mais tarde, e por causa do cheiro. E a patroa dizia:
-A menina é muito distraída! Mas que bolo de chocolate!
Pior foi aquela vez que trocou o açúcar pelo sal. Bolo salgado. Quindim salgado. Brigadeiro salgado. Refresco idem. A festa de aniversário do Paulinho só não foi um desastre porque a Doceria Dona Flor ainda estava aberta. A responsável foi encontrada em minutos.
-Só pode ser a Carmelita. Fazer o quê! A moça faz um bolo de chocolate!
Carmelita Carrasco Urugan era o nome da fera. A única coisa que fazia direito na vida era o tal bolo de chocolate. Inesquecível!
Sem igual! Fenomenal! Não havia adjetivos suficientes para qualificá-lo. Dizem até que alguns choravam após apreciá-lo.
Mas Carmelita, distraída e esperta, mais esperta que distraída, não passava o segredo. Uma hora dizia que era a mão, outra que era a oração que fazia enquanto o bolo assava, às vezes falava que era questão de medida certa, outras que era o chocolate. Mas o verdadeiro segredo da receita ela não passava a ninguém. A bisavó, a avó, a mãe e a própria Carmelita viveram, e viviam, tranqüilas por causa do bolo de chocolate. Nunca faltara emprego para elas. Durante gerações. Isso mesmo! Durante gerações e gerações a família de Carmelita mantivera-se empregada. A família empregadora podia até ir à ruína, mas elas não eram despedidas.
-Eu estou indo à falência. Minha família está praticamente arruinada… mas eu não despeço a Cassia. Nós não conseguiríamos viver sem o bolo de chocolate!, dizia o empregador da sua bisavó.
E não pense o atento e amável leitor que tinha bolo de chocolate todo dia! Carmelita sabia que o excesso leva ao desprezo. Assim, dizia que o tal bolo só podia ser feito quando da mudança de lua. E um unzinho só e sozinho de cada vez. Se fossem dois a receita desandava. Então era um único bolo a cada mudança de lua. E a raridade dava mais valor ainda.
E para fazê-lo a moça se trancava na cozinha. Fechava portas e janelas.  Punha papel molhado nas frestas. Não admitia ninguém junto a ela. Disfarçava as medidas. Rezava em voz alta.  Pedia ingredientes que não usava. Entrava de manhã e só saia à noite. Ligava o rock no último volume. Disfarçava ao máximo. E só saia de lá com o bolo pronto e já frio. O segredo era mesmo a alma do negócio.
Mas… é esse “mas” que leva as pessoas à perdição!
Mas, havia democratas, republicanos e socialistas que não se conformavam com a situação (que novidade, heim, leitor!). Democraticamente não era justo que uma única pessoa guardasse o segredo da receita perfeita. Republicanamente a replicação aos milhões do tal bolo de chocolate faria o capitalismo evoluir. Socialistamente  o direito de propriedade intelectual da receita era imoral, senão desprezível.
Assim, as forças políticas da sociedade se uniram para descobrir  o verdadeiro segredo da receita. Da receita do bolo de chocolate. É. Do bolo de chocolate da Carmelita. Carmelita Carrasco Urugan. A Humanidade tinha o direito inalienável de conhecer o segredo.
E uma comissão de notáveis foi constituída para armar um plano. A comissão não tinha dinheiro, pois era uma comissão de notáveis e não de banqueiros. O plano era simples e inteligente. A idéia era fisgar Carmelita pela vaidade, e não pelo bolso. A moça nunca se interessara em ganhar dinheiro com o bolo. Gostava de ser conhecida por “Carmelita, do bolo de chocolate”, “Carmelita, daquele bolo delicioso”, “Carmelita, aquela do segredo”. Então, o plano dos notáveis tocava a mola da vaidade, esse pequeno vício da humanidade.
E os notáveis foram convencer Carmelita:
-A senhorita, e com perdão da ousadia, moça prendada e vejo que pessoalmente é muito bonita e simpática, não pode guardar o segredo da receita de modo tão egoísta. A Humanidade tem o direito de comer o bolo de  chocolate até se fartar. Creio que poderemos chegar a um acordo…
-Mas, senhor notável, se eu revelar o segredo da receita eu vou perder meu emprego. Todos sabem que sou muito distraída, vivo quebrando coisas, esqueço de fazer minhas tarefas. Só não perco meu emprego por causa do segredo da receita. Se todos souberem o segredo, na minha primeira mancada  vou ser despedida…
-Ora! Ora! Carmelita! Menina inocente! Nós, os notáveis, somos muito poderosos. Nós podemos fazer uma lei que te dê estabilidade no emprego por seis meses…
-Só seis meses!?
Carmelita se traiu no “só” e o notável, que era bem notável, captou.
-Seis meses é pouco? Então lhe daremos oito meses! Não! Dez meses de estabilidade no emprego!
-Dez… ainda é pouco…
-Entendi! Um ano inteirinho de estabilidade, Carmelita!
-Um ano até que tá bom. Mas depois as pessoas vão se esquecer de mim. Não vou ser reconhecida como “Carmelita, a do bolo delicioso de chocolate”!
-Entendi, pobre criança! Já pensamos no assunto. Não se preocupe, Carmelita! Uma vez que você está cooperando para o intenso desenvolvimento ético e moral da Humanidade, você não será esquecida. Você será homenageada com um local com o seu nome. Lá, naquele novo loteamento da periferia, perto do manguezal, um pouco depois da estrada do curral pequeno. Seu nome será colocado em algum local de intenso movimento de pessoas. Isso eu prometo! Ou melhor, todos nós aqui prometemos! E para nós palavra dada, palavra cumprida!
-Agradeço tanta bondade, senhor notável. Mas tudo que o senhor falou é bom só para mim. Mas é injusto com outras pessoas que mantiveram o segredo. Minha bisavó, minha avó, minha mãe…
-Entendi, Carmelita! Não só você, mas também sua bisavó (Cássia Carrasco Urugan), sua avó (Catia Carrasco Urugan) e sua mãe (Carla Carrasco Urugan) serão homenageadas com nomes naquele novo loteamento! Isso eu prometo! Ou melhor, nós prometemos! E como já disse, palavra dada, palavra cumprida!
Carmelita ficou em dúvida. Mas além de distraída, a moça era esperta, muito esperta. Espertíssima.
-Tá bom. Eu topo. Confio na boa-fé dos senhores notáveis!
Foi marcado o dia para a abertura do segredo da receita. Dezenas de homens e mulheres compareceram ao salão paroquial. Exatamente na hora marcada Carmelita começou a revelar o segredo guardado por gerações em sua família:
-O segredo daquele sabor excepcional é até bem simples…
E Carmelita falou por dez minutos. Quando acabou as pessoas correram para suas casas. Fazer bolos de chocolate. E, incrível!, os bolos ficavam tão deliciosos quanto os da própria Carmelita!
-E os notáveis cumpriram a promessa. Naquele novo loteamento, perto do manguezal, Carmelita e seus ascendentes foram todos homenageados:
*Lixão Dona Cássia Carrasco Urugan.
*Poste Dona Catia Carrasco Urugan
*Pinguela Dona Carla Carrasco Urugan
*Bueiro Dona Carmelita Carrasco Urugan.
Carmelita teve estabilidade por um ano. Um dia depois de um ano foi despedida. Não se precisava mais dela. Tão distraída!
Mas… o mundo é tão cheio de “mas”…
Mas, depois de um ano comendo bolo de chocolate todo santo dia, e à vontade, o bolo de chocolate ficou tão comum que, aos poucos, foi sendo esquecido. Carmelita, distraída e esperta, sabia que o excesso levava ao desprezo.
Carmelita viu-se desempregada. Pela primeira vez na vida, desempregada. Não aceitou a primeira proposta que apareceu. Aguardou pacientemente uma oferta daquela casa que, seguramente, trabalharia até se aposentar.
Logo no primeiro mês de experiência todos ficaram encantados com Carmelita e, mais encantados ainda, com aquele bolo de laranja,  que só Carmelita sabia fazer. E que  ela só fazia quando da mudança de lua, e só um unzinho e sozinho de cada vez…Se fizesse dois a receita desandava.
E o segredo da receita do bolo de laranja só Carmelita conhecia.
E Carmelita, muito distraída, vivia quebrando as coisas. E a patroa:
-Nossa! A Carmelita é muito distraída, mas ela faz um bolo de laranja!
Um ótimo domingo e um excelente início de semana a todos vocês!

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