Lá do alto, bem lá do alto, o urubu, que é bom de vista, observava o conciliábulo. Empoleirados naquela grande árvore estavam a pomba, o curió e o tucano. Todos conversando animadamente naquela tarde ensolarada e modorrenta, e apontando para cima, para o urubu.
O dito cujo, que é bicho azedo, talvez por conta da alimentação, não deixou por menos. Aprumou as asas, deu uma ajeitada no bico, ligou o turbo e foi num mergulho tirar satisfação de tanta gente apontar para ele. Chegou soltando penas e dando rasteira em lagartixa.
-Qual é, pergunto, qual é o problema aí, minha gente? Estão apontando pra mim por que? Estão com inveja do meu pescoço vermelho? Alguém aí vai encarar? Cuidado que hoje ainda não almoçei!
As nossas outras três penosas, a princípio assustadas com a chegada pouco educada, mas logo refeitas, começaram o diálogo.
A pomba, toda branca e diplomática, quis aliviar a situação:
-Ó grande rei dos ares, não precisa ficar assim tão nervoso…
-Eu não estou nervoso! É meu jeito urubu de ser!
-Está bem! Está bem, não precisa ficar assim tão… tão… agitado. Nós só estávamos comentando como deve ser difícil para o senhor ser assim… bem, uma ave tão mal apanhada. Sabe, “seo” urubu, o senhor não é bem um sucesso nas paradas de beleza. E além da sua aparência pessoal, ou falta dela, as suas refeições, francamente!, não são de dar inveja a ninguém. Agora, sem falsa modéstia, olhe para mim, “seo” urubu. Eu sou uma pombinha, toda branca e limpinha, as pessoas gostam da minha companhia, eu como grãos limpos, sementes, migalhas de pão, e eu até sou, veja só!, símbolo de um partido político…
O urubu engoliu a raiva e ficou esperando a vez, como lhe ensinara seu velho pai-urubu.
Assim que a pomba terminou seu discurso, o tucano, todo prosa, começou cutucar.
-Pois é, “seo” urubu, a natureza é sábia. O senhor vê que eu tenho um baita bico, pesado pra caramba. Eu vôo pouco, lento e baixo. Mas eu sou tão bonito,mas tão bonito, que tá cheio de humano querendo caçar-me e prender-me em gaiola. É “seo” urubu, noblesse oblige, não tenho culpa de ser tão belo! Ah! como a beleza cança! Ah, sim! Ia esquecendo. Sou tão belo que também sou símbolo de um partido político…
O urubu continuou engolindo a raiva e esperando a vez. Como todos sabem, o urubu é um bicho muito paciente.
Entra em cena o curió.
-Quanto a mim, ó grandão, sou pequenino. Mas todos querem ouvir o meu canto. É certo que às vezes perco a liberdade e vivo em gaiolas, e sou vendido por preços altíssimos. Alguém aí sabe quanto vale um urubu? Perguntou o curió abusado, olhando com desdém para o grandão.
E nosso amigo urubu continuava lá. Com a raiva agora gelada, começou então a falar.
-Vocês três ficam aí só preocupados com aparência, voz, status político. Nós, urubus, nos concentramos em coisas mais sérias. Por exemplo, o nosso serviço secreto…
-Serviço secreto de quem? Perguntou a pomba toda curiosa.
-Ora, serviço secreto dos urubus! Bem, nosso serviço secreto descobriu que os fazendeiros sacrificaram dezenas de bois por conta da tal da febre aftosa, e os enterraram numa cova comum. O nosso serviço secreto, junto com nosso serviço de meteorologia também está ciente que vai haver uma grande chuva logo, logo. E que uma enxurrada vai passar bem em cima do lugar do cemitério dos bois e vai deixá-los todos expostos. Aquelas dezenas de apetitosas carcaças ficarão a vista dos nossos inimigos, aqueles urubus nojentos que moram do outro lado da montanha. Não sabemos ainda o que faremos com este tesouro, só não podemos deixá-los para os inimigos.
As três penosas desataram a rir. Não podiam acreditar. O tesouro do urubu! Um cemitério de carcaças de boi! Riam tanto que soltavam penas a mil. O cara, além de feio e nojento, tinha por tesouro aquelas carcaças asquerosas. E começou a gozação:
-Ó “seo” urubu, o senhor guarda o seu tesouro em qual banco?
-Em dólares, quanto vale o seu tesouro?
-O senhor faz seguro dele?
-Olha lá, heim! Não se esqueça de me incluir no seu testamento!
E o urubu quieto e digno. Tão digno quanto possível a um urubu.
Quando a farra cessou, nosso amigo urubu continuou.
-Como vocês mesmos disseram, a natureza é sábia. Eu sou feio, nojento e vôo alto e por muito, muito tempo. Pego as correntes de ar quente e fico horas e horas surfando no firmamento. Eu vôo muito mais alto que você, dona pomba, que não vai além da copa das árvores. Ou mesmo de você, “seo” tucano, que voa baixo e é lerdo pra caramba. Ou mesmo o curió, que é rápido, mas voa baixo. Eu vôo alto e posso ver tudo que acontece aqui na pradaria. Vocês não imaginam os lances que eu pego bem lá de cima! E eu fico horas e horas planando, e planando, e principalmente olhando para baixo. É isso mesmo! Eu olho para baixo, mas ninguém olha para cima. Ninguém olha para cima para ver se está sendo observado. Todos olham para os lados para se certificarem que estão a sós. Ninguém olha para os lados e depois para cima. Esqueçem que é de cima que se tem o melhor campo de visão.
Quando o urubu parou, propositadamente, para tomar fôlego os nossos três amigos pândegos estavam sérios. A pombinha estava preocupadíssima. O tucano de queixo caído. E o curió, quem diria, perdera a voz.
E o urubu, depois de dar uma olhadinha irônica no trio,continuou:
-Mês passado eu peguei um lance… O marido de uma certa pomba foi visitar a mãe dele que estava doente e que mora do outro lado do barranco do rio. Imaginem só que, na ausência do marido, a pombinha foi visitar o ninho do seu antigo namorado e ficou lá por muito, e muito, tempo. Parece até que sentia frio pois a coitadinha ficava o tempo todo encostadinha no antigo namorado…
O urubu olhou de soslaio e viu que a nossa pomba branca estava pálida, com os olhinhos arregalados, suando frio…
-E outro dia, na véspera daquele feriadão, à tarde, lá de cima, (e inocentemente, pois não sou fofoqueiro), eu avistei um tucano roubando seu sócio. É isso mesmo! Dois tucanos são sócios num negócio de sementes, e um deles foi fazer compras na floresta aqui do lado. Foi só o cara começar a viagem, que o tucano safado surrupiou metade das sementes do estoque e escondeu-as na casa da amante. É, sim! Da amante!Além de ladrão, aquele tucano sem-vergonha trae a mulher! Bem debaixo do bico dela! Eu juro que poderia reconhecê-lo! Ele tem uma pinta preta grande do lado esquerdo daquele bicão amarelo.
Nisso o tucano começou a tossir e, educadamente, cobriu o bico com a asa.
E dá-lhe urubu!
-Mas o pior talvez seja aquela cena de violência que lá de cima, bem lá de cima, presenciei. Era um passarinho pequeno, bem pequeno, com vários filhotes no ninho. Ao invés de alimentá-los e dar-lhes amor, carinho, calor e etc e tal, dava-lhes bordoadas, sopapos e tapas. Verdadeira violência doméstica no ninho. Bem no lugar onde deveria haver proteção àqueles recém nascidos.
Escutou-se um barulho. Era o curió desmaiando e caindo ao chão. A pomba precisou fazer respiração bico-a-bico para reanimá-lo. Pomba safada; aproveitou-se da situação.
Depois de alguns minutos a turma se refez e a compostura voltou ao trio. A pomba foi a primeira a falar:
-Mas, doutor urubu, o que o senhor pretende fazer com todo esse seu conhecimento?
-Exatamente! (Era o tucano). Com a sabedoria e elegância que lhe é peculiar, fica mal sair fofocando pela pradaria!
-Um urubu-rei, de antiga linhagem aristocrática européia, que certamente é o seu caso, não vai ficar preocupado com estas questiúnculas típicas de Zé-povinho…(era o curió).
A pomba continuou:
-E a propósito, doutor urubu, o senhor conhece algum urubuzinho para adoção. Eu estou procurando um… eles são tão fofinhos…
E o urubu fez o discurso final.
-Bem, eu estou reunindo todos esses lances heterodoxos numa autobiografia. Relatarei todos os fatos que vi, desde minha adolescência. Mas a publicação acontecerá só após minha morte.
Os três suspiraram.
Suspiraram e tremeram.
Suspiraram e balbuciaram:
-Vida longa ao urubu!
-Vida longa ao urubu!
-Vida longa ao urubu!
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